Por uma ética do diálogo na IECLB

Por uma ética do diálogo na IECLB
12 de março de 2021 zweiarts
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Pela unidade do Espírito no vínculo da paz

Convite ao diálogo na IECLB

 

Introdução: todos necessitamos de entendimento e sabedoria

O livro de Provérbios ensina que é preciso afastar-se das pessoas “insensatas” e “andar pelo caminho do entendimento” (Pv 9.6). O entendimento é a estrada do diálogo fraterno, que busca a compreensão e o crescimento mútuo. Assim, o mesmo livro propõe, ainda, que é melhor não se desgastar com as pessoas que são dadas ao “escárnio”. Então, melhor seria usar nossa energia com as pessoas “sábias”, pois essas têm a capacidade de se tornarem mais sábias ainda. As pessoas sábias e justas, pelo diálogo, “crescem em prudência” e devolvem em afeto a energia dispendida com elas.

O termo “escarnecer” não é muito corrente em nosso cotidiano, mas é muito comum no mundo bíblico. É uma palavra tão forte que, em uma profecia sobre a futura redenção de Israel, o profeta Isaías diz que as pessoas mansas “terão regozijo no Senhor”, mas as pessoas escarnecedoras que, por causa de “uma palavra”, condenam seus semelhantes, deixarão de existir. Elas serão transformadas. No futuro do reino, diz o profeta Isaías, as pessoas que “erram de espírito virão a ter entendimento” e as pessoas “murmuradoras” vão aceitar instrução (Is 29.17-24). Às pessoas a quem falta o entendimento e que murmuram noite e dia cabe, então, a esperança na redenção futura e a nossa oração sincera para que recebam entendimento e possam alcançar sabedoria.

No entanto, é muito fácil e tentador dividir o mundo entre pessoas sábias e insensatas (ou néscias, como diz uma conhecida parábola). Consoante o bom ensino luterano acerca da justificação, mais sensato seria aceitarmos que todas as pessoas são simultaneamente sábias e insensatas. Não é assim que algumas pessoas podem viver na posse e no gozo do entendimento e outras estão condenadas à insensatez e ao escárnio. Trabalhar pelo entendimento é uma tarefa de todas as pessoas crentes, ainda que, vez ou outra, também se assentem na “roda” das pessoas “escarnecedoras” (Sl 1.1).

“Andar de modo digno da vocação” (Ef 4.1): uma ética para o diálogo

Vivemos em tempo difíceis. A Igreja de Jesus Cristo é confrontada com desafios enormes e urgentes. Diante das forças que ameaçam o mundo, ela não pode se dar ao luxo de dissolver-se em lutas intestinas e fratricidas. É por essa razão que a carta, ou tratado, dirigida à comunidade de Éfeso acentua os elementos necessários para a unidade da Igreja. Trata-se de uma batalha contra a lógica sedutora do poderoso Império Romano, que oscilava entre o enfrentamento e a assimilação da fé cristã, gerando discórdia e desunião.

Trata-se de um enfrentamento entre a “parussia” do Império e a “parussia” do reino de Deus. O Império Romano, com sua marca guerreira e seu empenho pela sujeição de todos os povos, agredia a face pacífica da fé cristã (Jo 14.27). A lógica patriarcal do Império ameaçava o chamado da fé cristã à uma nova modalidade de relações proposta pelo evangelho (Gl 3.28). A injustiça e a desigualdade produzidas pela guerra incessante e pelos tributos escorchantes perpetrados pela política imperial contradiziam frontalmente a prática da diaconia cristã (At 6.1-7; Rm15.26). A sedução de partilhar do poder e da cultura imperial ameaçava, na forma da idolatria, a comunhão que a fé cristã apregoava e praticava (1Co 10.14-12.31). Ameaças semelhantes rondam hoje a Igreja de Jesus Cristo.

Há, no entanto, um modo digno da vocação cristã. Ele supõe um comportamento que esteja à altura da vocação que recebemos. Sim, esse modo digno contempla a discórdia, a diferença de opinião. Temos exemplos bíblicos de que isso ocorria (Gl 2-11.21) e, nesses casos, cabia o exercício fraterno da admoestação (Rm 15.14). Assim, as pessoas crentes devem umas às outras uma etiqueta correspondente ao evangelho por amor de Jesus Cristo. É fato que, por amor ao evangelho, seremos entregues aos tribunais (Mc 13.9), mas, de forma alguma, deveremos levar aos tribunais e à justiça comum as discordâncias acerca da nossa fé (1 Co 6.1-11). Judicializar as questões relativas a nossas diferenças teológicas é uma “derrota” para a fé cristã. É um atestado de que temos sido incapazes de buscar um entendimento fraterno e sororal entre nós. Ora, como diz Paulo no texto acima citado, somos pessoas que foram santificadas e justificadas. Cabe-nos viver de modo digno segundo a divisa da nossa vocação. Essa vocação supõe uma ética para o diálogo, mesmo quando discordamos.

“Suportar uns aos outros em amor” (Ef4.2): o princípio para a ética do diálogo

Irmãs e irmãos, a Faculdades EST tem sido vítima de muitos ataques desleais dentro de nossas fronteiras confessionais. Irmãs e irmãos da fé luterana têm usado as redes sociais para exercitar um ódio descabido contra posicionamentos teológicos que a Faculdades EST tem abraçado, segundo seu sincero e denotado escrutínio bíblico, em fidelidade às tradições da Reforma e em conformidade com as convicções teológicas assentadas em sua longa história de serviço às comunidades da IECLB.

Dois casos chegaram ao conhecimento da Faculdades EST e causaram muita dor e sofrimento. O primeiro caso trata de agressões dirigidas à honra e à reputação da instituição e das pessoas que nela trabalham. Em maio de 2018 a Faculdades EST encaminhou notificação extrajudicial, solicitando que a pessoa cessasse suas agressões. O segundo caso ocorreu no início de 2021. Nas postagens nas redes sociais, alguém se referiu à Faculdade como “antro demoníaco” e equiparou o “feminismo” à morte. Em outra postagem, referindo-se a um curso sobre teologia de gênero, pessoas da Faculdades EST e pessoas convidadas foram chamadas de “putinhas aborteiras”. Nesse segundo caso, as duas pessoas identificadas também foram notificadas no mesmo espírito: cessarem as ofensas e agressões gratuitas. Não satisfeita, uma delas lançou nas redes sociais a notificação encaminhada e escarneceu mais uma vez da tentativa pacífica que a Faculdades EST adotou para conduzir essas situações.

As pessoas que, de forma consequente, procuram testemunhar e viver o Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo podem, sim, ser vítimas de escárnio. A pessoa que segue Jesus Cristo sabe que leva no seu corpo “o morrer de Cristo” (2 Co 4.10) e está sujeita ao escárnio como ele o foi (Mt 27.27-31). Mesmo as autoridades constituídas escarneciam de Jesus (Mt 27.41). Assim, quem anunciava a morte e ressurreição de Cristo também conheceu o escárnio (At 17.31). Obviamente, não imaginamos que o escárnio pudesse vir de pessoas que confessam conosco a mesma fé. Esse escárnio é mais doloroso do que aquele que vem de fora.

O texto da carta à comunidade de Éfeso, citado no título, convida as pessoas que professam a fé cristã a suportarem umas às outras. Suportar é conviver com aqueles e aquelas que discordam de nós. Sim, há diferença entre nós na maneira como interpretamos o Evangelho e de como vivemos nossa fé. No entanto, a busca do entendimento é necessária, pois é ele que possibilita que, em última análise, nos rendamos ao mistério da encarnação de Cristo e ao seu Evangelho da reconciliação de todas as diferenças. Sem o amor fraternal e sororal que, na busca do entendimento, permite que nos suportemos enquanto andamos nessa “árdua e rude via” (LCI 604), fragmentar-nos-emos numa horda de pessoas escarnecedoras e insensatas que se atacam de maneira desleal e covarde.

Além disso, essa insensatez nos transforma em donas e donos da verdade. Sim, permanecendo na Palavra, conheceremos a verdade e ela nos libertará. Bem entendido, esse trecho do Evangelho de João (Jo 8.32) não diz que as pessoas que discordam de nós conhecerão a verdade. O Evangelho diz que todos nós conheceremos a verdade: as outras pessoas e também nós. É possível que o que reclamamos como verdade seja apenas uma insensatez de nossa parte e, portanto, precisaremos dessa verdade para que possamos ser pessoas libertas. A verdade do Evangelho não é atributo nem posse humana. Todas as pessoas crentes oram e esperam para que sejam iluminadas pela verdade do Evangelho, dádiva preciosa de Deus através do Espírito Santo.

Nos dois casos aludidos, a Faculdade EST optou por, identificadas os indivíduos que externalizaram de forma desleal o seu ódio contra a instituição e contra as pessoas que exercem nela seu ministério regularmente, dirigir-se a elas chamando ao bom senso e ao diálogo na forma de comunicação extrajudicial (justamente uma forma pacífica e não judicial de admoestação). Tem sido especialmente doloroso ver que essas comunicações foram expostas nas redes sociais como objeto de mais escárnio. O ódio parece estar crescendo entre nós numa espiral diabólica (o que separa, afasta e desagrega, conforme expressa a palavra grega original “diabolein”). Trata-se do mal que cresce de forma silenciosa e imperceptível como erva daninha numa plantação. Contudo, haverá um tempo em que será preciso discernir a erva daninha (o joio) no seio da plantação (Mt 13.24-30).

De forma alguma queremos abrir demanda judicial contra irmãos e irmãs na fé, conforme anteriormente lemos em 1 Cor 6.1-11. No entanto, não podemos deixar de lembrar que o ódio dessas irmãs e irmãos atinge a honra e desqualifica pessoas que, fiéis a sua fé, buscam seguir Jesus Cristo de maneira consequente. Esse ódio não pode seguir vicejando entre nós. Ele atenta contra o Evangelho. Ele menospreza a memória do Crucificado, que morreu para que as divisões cessassem e os ódios fossem aplacados. Ele mancha o nosso testemunho ao mundo.

“Um corpo, um Espírito, uma fé, um batismo e um só Deus” (Ef 4.4-6): critérios teológicos do diálogo

A Igreja de Jesus Cristo é acontecimento da Palavra que não vem a nós de outro modo que não seja pela ação do Espírito Santo. E é esse Espírito que nos santifica pela Palavra – na forma da pregação e dos sacramentos – e nos conduz à santa unidade do corpo de Cristo, concedida a nós pela fé e pelo batismo (1 Co 12.12-14).

Nesse corpo, não há membros inúteis dispensáveis. Todos cooperam para o bom funcionamento do corpo e nenhum deles pode ser excluído. E, se há “fraquezas” no corpo (1 Co 1.18-31), não nos deixemos enganar, pois o “poder” de Deus “se aperfeiçoa na fraqueza” (2 Co 12.9). Diante daquilo que, segundo nosso parecer, é questionável, criticável, reprovável ou mesmo detestável no corpo, exercitemos o entendimento que se abre para percebermos a graça que é a diversidade de membros e a multiplicidade de dons (1 Co 12.14-31).

No corpo de Cristo, o Espírito Santo nos congrega para que possamos ouvir a Palavra. Lutero afirma que, na experiência de escuta da Palavra, o Espírito “nos ensina como em sua própria escola” (Lutero, Magnificat, 1520-1521). É na “escola do Espírito” que aprendemos que há um só Senhor, um só Deus, “o qual é sobre todos, age por meio de todos e está em todos” (Ef 4.6). Na “escola do Espírito”, cursamos os componentes da unidade e da convivência, sabendo que somos um corpo composto de muitos membros, que foram contemplados com a “multiforme graça divina” (1 Pe 4.10).

A “edificação do corpo de Cristo” (Ef 4.12): a meta do diálogo

A diversidade de membros e a multiplicidade de dons têm um único propósito: a edificação do corpo. Esse corpo visível da Igreja é uma expressão pálida da glória divina.  A monotonia do mesmo e do igual não dá conta de expressá-la. Há em Deus riqueza tão inigualável e mistério tão profundo que é preciso combinar no corpo a maior complexidade e a maior diversidade imaginável para que seja possível dar um frágil testemunho do propósito de Deus e do seu reino. Em Deus, o igual e o diverso convivem e são reconciliados; o possível e o impossível encontram mediação. A edificação do corpo de Cristo não é uma equação de subtração ou divisão. Portanto, essa edificação transborda nossa possibilidade de entendimento. Edificar o corpo de Cristo é obra do próprio Deus.

“Cresçamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo” (Ef 4.15b): a esperança do diálogo

Entretanto, os critérios para essa edificação são conhecidos. Cabe-nos “seguir a verdade em amor“ (Ef 4.15a). Novamente, está aí uma equação que nos escapa. Nossa compreensão de verdade supõe sempre uma construção por expurgos, exclusões. A pureza da verdade sempre se nos afigura como uma obra de grande violência, pois toda sombra ou mácula que ameaça a verdade precisa ser extirpada. Entretanto, a verdade de que fala o Evangelho não é algo a ser possuído. Antes, cremos que Cristo, que é “cabeça”, é a própria verdade em ação. Então, não se trata de termos a posse da verdade, mas sermos possuídos pela verdade que repousa em Cristo. Assim, “(…) seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo, de quem todo o corpo, bem-ajustado e consolidado pelo auxílio de toda junta, segundo a justa cooperação de cada parte, efetua o seu próprio aumento para a edificação de si mesmo em amor.”( Ef 4.15-16).

Epílogo: ir além do entendimento (Ef 3.19)

Todo entendimento humano, por mais abnegado e consciencioso, pode ser falho. Assim não cabe nenhum ufanismo de nossa parte na busca do entendimento. Convém deixarmo-nos conduzir pelo amor de Cristo, que excederá o nosso entendimento.  Portanto, queremos encerrar esse convite com esse texto de Efésios (3.17-19), crentes de que ele expressa o anseio maior da nossa fé:

(…) assim, habite Cristo no vosso coração, pela fé, estando vós arraigados e alicerçados em amor, a fim de poderdes compreender, com todos os santos, qual é a largura, e o comprimento, e a altura, e a profundidade e conhecer o amor de Cristo, que excede todo entendimento, para que sejais tomados de toda a plenitude de Deus.

 

São Leopoldo, quaresma de 2021.

 

Extraído de: Faculdades EST – Notícias

 

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